Valerá a pena comparar a vida de um artista com a sua obra? Em todos os estilos musicais, mais ou menos eruditos, aparecem artistas em que a sua vida se confunde com a sua obra. Na indústria pop muitas vezes acontece que a vida do artista acaba por ser mais relevante que a sua obra. É verdade que nos anos mais recentes Nick Cave se expõe como nunca, dando entrevistas, publicando livros de entrevistas, nas redes sociais, nos festivais internacionais de música, nos programas de TV, etc. Nick Cave passa a vida a falar de si e os media tem adorado essa exposição. Segue-se que umas boas doses de críticas a cada novo disco acabam por se centrar mais na sua vida do que na sua obra musical. Mas a certo ponto faz sentido que assim seja, pois, a obra de Cave é mesmo um reflexo direto, confirmado pelo próprio, das suas vivências, das suas relações com o mundo espiritual e material, da perda dos dois filhos, da dor e da redenção, da felicidade e da fé. A música aparece assim como o corolário de exposição de todo este estado sentimental do artista, da sua investigação mais pessoal e íntima (ainda que o mesmo a partilhe, como referi, com o mundo) de estados mais abstratos como os de felicidade e perda ou infelicidade, da redenção e superação, da celebração e da fé. Para quem desconhece o percurso de Cave talvez os discos acabem por resultar menos interessantes, não sei. Sou suspeito pois conheci Nick Cave ainda adolescente quando o mesmo publicou o duro Tender Prey, muito distante das incursões das obras mais recentes. Mas Cave nestes aspetos não é caso isolado. Situo-o naquele naipe de artistas tão singulares que são muitíssimo influentes sem serem imitados, já que tal é praticamente impossível dada a singularidade de cada um. Á cabeça um Tom Waits. Mas também um Neil Young, Leonard Cohen ou um ocasional Lou Reed, David Bowie e John Cale e, para não escapar uma autora feminina, Diamanda Galás. Todos eles comungam desta singularidade criativa que os faz únicos, praticamente incomparáveis. E em todos eles a obra reflete os tumultos e alegrias das suas vidas.
Wild God é o novo disco de Cave. Dada a exposição do autor que referi, já sabíamos antes de ouvir o disco que o mesmo é um regresso à celebração da vida depois da negritude mais pesada dos trabalhos anteriores, nomeadamente de Skeleton Tree (2016) e Ghosteen (2019). Pelo meio as catárticas apresentações ao vivo que revelam ainda mais este peso pesado da singularidade artística de Cave e o devolve ao público com todos os demónios que o assombram desde os tempos dos Birthday Party e dos The boy Next Door. Contudo seria muito estranho que Cave se apresentasse ainda com a toada de From Her To Eternity (1984). Arrisco a dizer que seria humanamente impossível viver uma vida debaixo daquele tormento pessoal refletido, lá está, no disco. A beleza de From Her To Eternity é arrancada a excessos mais compatíveis com a juventude e não tanto com o homem de 67 anos que Cave já conta.A viragem aconteceu em The Good Son (1990), um álbum onde a beleza parecia florir depois da tempestade. E uma vez mais esse disco, com Cave a entoar baladas ao piano surge após uma desintoxicação e a sua estadia no Brasil, como que a anunciar, mais uma vez já nessa altura, uma viragem de rumo na sua vida. Foi nesse disco que Cave se revela um cantor e compositor de belíssimas melodias, que se viriam a confirmar praticamente em toda a obra até os dois Skeleton Tree e Ghosteen e agora, com a energia renovada, em Wild God. E é sim um disco, mais um, de canções plenas de esperança, um novo ar que se respira, de um Nick Cave que mais uma vez se ergue imponente perante as adversidades reconhecendo afinal que merece a celebração de por cá estar a compor e a expor a sua arte ao mundo.
E o que nos traz Wild God? Traz-nos um compositor completo, meticuloso como nunca, um especial cuidado com cada contorno de cada canção do disco. Não há desgaste algum neste formato pois ninguém compõe como Cave e cada disco que ele publica é uma graça de novidade e saudade de cada pedaço de som. Destaque para os coros Gospel, já antes usados, mas aqui num esplendor ainda mais lustroso. Como Cave, ele mesmo, o afirma: “é um disco sobre o amor e sobre amar”. Mas para mim é antes disso, um disco de delicadas composições sonoras que valem cada pedaço.
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