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O que ouvi em 2019

Porque acho que o rock and rol ainda tem muito para dar, este ano foi de regresso a velhas matrizes do rock. E quem sofreu foi o hip hop. 
Depois de algum entusiasmo inicial, pouco me restou de tempo para lhe dedicar maior atenção. As surpresas maiores chegaram da Irlanda. O tom urbano depressivo de uma Manchester, finais de setenta e inícios de oitenta regressaram, qual ressurreição de Ian Curtis. “Dogrel” dos jovens Fountains DC foi o disco que mais gostei de ouvir ao longo do ano. É um disco forte, com canções viciantes, cheias de poesia. Está lá o manual todo dos Joy Division que também foi o manual do Rock Rendez Vous. É assim que chega à memória aqueles lálálás meios desnorteados  a funcionar como as luzinhas numa árvore de natal. Mas também há lá muito da música popular da Irlanda, talvez como o foco apontado aos Pogues do agora velhinho Shane McGoan. Desengane-se no entanto quem pense que se trata de um mero revivalismo. Diria mesmo que nem sequer há qualquer revivalismo, muito embora as referências sejam óbvias. Não deixaram por isso de lançar o mais belo disco do ano. 

Mas é também desta nova vaga irlandesa que chegou o meu segundo disco de eleição, “when i have fears” dos Murder Capital. Um disco mais duro que Dogrel mas na mesma linha de tensão entre o belo poético e a catarse pós punk de uma Manchester marcada pelo cinzento fabril. Estes dois discos pareciam estar guardados à espera de 2019 para serem publicados, uma maneira de nos alertar que toda aquela estética urbano-depressiva ainda tem muito a dar ao mundo. E tem. 

A minha terceira escolha teria de recair sobre o recente novo disco de Nick Cave e as suas fadas más. Comecei a seguir Nick Cave logo após a fase inicial dos caóticos Birthday Party. É uma carreira notável. Os Birthday Party eram o caos punk, mas já com muita arte. Mas a carreira de Nick Cave teria um dia, a ser longínqua como o tempo está a provar que é, de assentar arraiais. Assim, no período de “The good son”, depois da desintoxicação inicial, comecei à espera que o australiano entrasse em decadência criativa. Pois ela nunca chegou e já mostrou que nunca vai chegar. Foi, é e será criativo até morrer. Este disco nasce do luto pelo seu filho, menor. Mas é um disco no qual Cave faz contracenar a escuridão com a luz. De certo modo ele sempre soube fazer isto muito bem, mesmo antes da experiência dolorosa da perda do filho. Mas agora fá-lo sem a bebedeira de “Henrys Dream” ou “Tender Prey”. Um disco belíssimo, melódico, intenso. 


Mas Nick Cave divide com – felizmente - muitos outros artistas o estatuto daqueles que não descuidam a qualidade a cada obra que fazem. Com o mesmo estatuto estão os norte americanos Swans de Michael Gira. Quase no final de 2019 lançam um dos melhores discos do ano. Ao contrário de Cave que foi moldando a sua obra à medida da passagem do tempo e das experiências mais íntimas, os Swans lançam dois ou três discos de catarse apoteótica seguidos de um outro que, arrisco a classificar, é de serenidade. E arrisco pois parece sempre desajustado chamar serenidade às canções dos Swans. A voz de Gira parece ter saído do sofrimento de uma caverna escura, onde só se ouve o eco que o coração tem para dizer ao mundo, uma voz arrancada a sangue e peso. E a garganta de Gira parece intacta desde os primeiros tempos. Este disco, “Leaving meaning” é de canções a roçar o doce negrume, como se Bela Logosi cantasse canções de embalar. Como toda a obra dos Swans, dos discos mais intensos ou mais serenos, também este novo disco é belo, soturno, carregado, pesado. E a voz de Gira é inconfundível e um instrumento musical, um meio de expressão da banda. Este álbum marca também uma viragem na composição dos Swans. Gira, o cérebro da banda passa a não ter formação permanente (que até durou bastantes anos, pelo menos na primeira formação) e passa a convidar os músicos que pensa melhor se adaptarem ao que pretende fazer. Segundo o próprio, no site da banda, leaving meaning. is the first Swans album to be released since I dissolved the line up of musicians that constituted Swans from 2010 – 2017. Swans is now comprised of a revolving cast of musicians, selected for both their musical and personal character, chosen according to what I intuit best suits the atmosphere in which I’d like to see the songs I’ve written presented. In collaboration with me, the musicians, through their personality, skill and taste, contribute greatly to the arrangement of the material.

Ok, continuo nas velhas guardas. Kim Gordon, ex Sonic Youth surpreende com um álbum abundante em eletrónicas e com malhas do rock mais próximo do urbanismo old school Sonic Youth. “No home record” contém, como disse, eletrónica e o hipnotismo de outrora. Parece que Gordon afogou as mágoas todas no livro autobiográfico que escreveu “A miúda da banda”, para se limpar de um passado que ainda a limitava criativamente. Por isso talvez este disco é fresco, excitante e bonito. 

Os Mão Morta fazem em Portugal o papel reservado a Nick cave em paragens internacionais. Parece que lhes cabe a tarefa de mostrar que a idade não é um posto, mas também não é uma limitação. Neste caso, bem pelo contrário. Regressaram este ano com mais um disco de rock conceptual. “No fim era o frio” tem o conceito das guerras pelo clima. Toda a narrativa do disco versa sobre uma sociedade distópica à beira do abismo. E só assim faz sentido qualquer obra pela pena de Adolfo Luxúria Canibal que assinam neste disco um dos melhores momentos auditivos que tive no ano que agora finda.
A escolha seguinte quase que poderia toda ela ser escrita em português. Isto porque os Deafkids são uma banda brasileira. Não sei como classificar a música oferecida e gravada em “metaprogramação”. É uma música carregada, quase trash, noise, tecno, kraut. Mas é um disco com uma composição forte. São guitarras industriais sob uma matriz eletrónica, vozes guturais. 
Acho que nunca meti um disco dos King Gizzard & The Lizard Wizard numa minha lista dos melhores do ano. Isto mesmo considerando que a banda grava discos como quase se troca de camisola. Acontece que este “Infest the rats`nest” é um disco que me parece ter ido bem mais longe que pelo menos os anteriores que fui ouvindo. Um heavy metal muito próprio com uma loucura que caracteriza muito bem o som da banda. Um dos seus melhores discos e eleito para mim entre o meu top tem de 2019.
Para não quebrar o ritmo e já que falo de loucura os Black Midi teriam de ser a óbvia escolha seguinte. “Schlagenheim” é um rock que vem de outro planeta. Mas chega nos anos 90. Uma verdadeira loucura sonora, um disco que tem tanto de explosivo como de desesperado. Não dá tréguas do primeiro ao último minuto. 
Nunca sabemos bem do percurso de muitos dos músicos que acabam por produzir os discos que amamos. Mas tive muita curiosidade em tentar perceber quem era Holly Herndon. E descobri que ela não é só uma compositora, mas também uma espécie de cientista dos sons. Não em sentido literal, mas “Proto”, o disco que escolhi, resulta de uma investigação intensa da compositora. Música com músculo porque coerente, ora pop, ora eletrónica desvairada. 
Sempre recebi com amabilidade as canções dos americanos The National. E o último disco não me desiludiu. são canções emotivas, que se ouvem com facilidade. Eu diria que os National fazem hoje em dia aquilo que em meados dos noventa fizeram os Tindersticks. Ocuparam o seu lugar. E ocuparam-no bem. 
Talvez o disco que marca o regresso em 2019 dos Cinematic Orchestra seja apenas um disco simpático, muito distante da aura de disco de culto do seu primogénito. Mesmo assim não consigo ver de parte desta lista a simpatia deste disco. 
O americano Glenn Branca partiu desta vida em 2018, de forma que este disco adquire o estatuto de póstumo. A carreira de Branca é fundamental para compreender os meandros do rock experimental, uma herança de John cage mas colocada ao serviço do rock. E os discos de Branca são de ruído impiedoso, pelo que aqui não vão encontrar uma música bela, mas antes uma música ruidosa, um pandemónio de guitarras. Mas talvez o mais importante da música de Branca é o que não está lá, o que aquele paredão de ruido impiedoso deixa no ar, como um fumo que permite entrar naquele mundo. The third Ascension, com os seus riffs sempre em alta frequência, acaba também por ser a despedida do seu autor deste mundo. 
A soul é um território bastante fértil de boas vozes e bons músicos. Confesso que além dos clássicos pouco me dedico a ouvir discos de soul. E também é verdade que cheguei bastante tarde à soul. Creio lá ter chegado com Isaak Hayes. Claro que antes ouvia outras coisas claramente inspiradas na soul, embora sem o saber. Nunca mais me esqueço que quando escutei atentamente o walk on by, um clássico com dezenas de interpretações sendo que a de Isaak Hayes é para mim das melhores, percebi de imediato onde é que os Portishead foram buscar inspiração para a gravação de roads, uma canção fora de série. E vem isto a propósito de um músico que já me tinha chamado a atenção, Michael Kiwanuka, um músico soul britânico que lançou este ano um belíssimo disco soul com o seu nome no título, Kiwanuka. Mas o músico não vem da America, terra por excelência da melhor soul. O músico é britânico. No entanto isso pouco interessa para a qualidade da sua obra, com referências óbvias aos melhores nomes da soul, de Al Green a Isaak Hayes e certamente passando por muitos outros que ainda me escapam. Kiwanuka é um rapaz dos seus 32 anos, mas tem já uma carreira consolidada, pois além de músico e cantor (excelente mesmo, diga-se) é ainda produtor. O disco tem melodias conseguidas e uma batida (pancada) bastante forte.
E se nunca fui um fã especial de soul, a verdade é que também nunca fui um fã especial de Leonard Cohen. Não me sobra qualquer dúvida sobre a influência que este compositor e escritor de canções teve em muita da música que ouvi. Mas para mim sempre foi uma influência mais silenciosa. E o Leonard Cohen sempre oscilou entre a composição de canções populares de massas e um lado mais complexo, mas elaborado, mais revelador do seu lado mais interessante, quando a mim, o de fabricador de canções. Apesar de tudo isto quando ouvi este último recente disco de Cohen, já póstumo, veio logo à memória Balckstar o obscuro e intenso disco que Bowie nos deixou logo após ter partido. Também este parece um disco sacado à sombria morte. A voz é soturna e, agora vê-se (ouve-se) bem, parece saída das cavernas, lá do fundo da terra, ecoando pelas grossas paredes de rocha e pelo frio dos tuneis até à superfície. Parece quase um disco de sussurros. Mas é um disco que merece algum destaque aqui pois perdi algum tempo com ele, a tentar ver o que sucedia. E sucedem melodias bonitas na sussurante e elegante voz única que se eternizou nas canções. O álbum leva o título final, “Thanks for the dance” que, para quem conhece a carreira de Cohen, é a despedida derradeira, o derradeiro adeus do artista.   

Ainda falta o mês de Dezembro pelo que alguma surpresa pode suscitar um upgrade ao texto aqui apresentado. Espero que estas sugestões sejam apelativas. 

Ainda deixo uma lista de alguns outros discos que de uma maneira ou outra mereceram o meu tempo ao longo do ano:

1.     Bon Iver “i,i”
2.     Actors “It will come to you”
3.     The Black Keys “Let`s rock”
4.     Ceremony “In the spirit world now” (americanos, California)
5.     The chemical Brothers “No geography”
6.     Combichrist “One fire”
7.     Drahla “Useless coordinates” (influência de Sonic Youth)
8.     Ezra Collective “You can`t steal my joy”
9.     Famous “England” (banda de londres)
10.  James Blake “Assume form”
11.  Kate Tempest “The book of traps and lessons”
12.  Life “A picture of good health” (também calofornianos)
13.  Little Simz “Grey Area”
14.  Tinariwen “Amadjar” (colaboração de Warren Ellis na escrita)
15.  Thom York “Anima” (não é um álbum dos Radiohead e isso nota-se)
16.  Pharmakon “Devour”
17.  Gorecki, Beth Gibbons “symphony nº3” (regravação desta maravilhosa pela de Gorecki, agora com a participação soberda da voz que ficou conhecida com os Portishead”
18.  Slipknot “We are not your kind”
19.  Matmos “Plastic anniversary”
20.  Ezra Furman “Twelve nudes”
21.  Iggy Pop “Free”
22.  Africa Express “Egoli” (projeto de Damon Albarn, ex Blur)
23.  Ty Segall “First taste”
24.  The Vacant Lots “Exit” EP (americanos, eletro psych)
25.  Devendra Banhart
26.  Pixies “Beneath the Eyrie”
27.  The Young Gods “Data mirage tangram”
28.  Tindersticks “No treasure but hope”



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