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Professores, cinema e Nicolas Cage

Eu tenho um amigo que é realizador de cinema. Como sabemos o cinema exige largos recursos. Acompanho há uns bons anos o percurso do meu amigo. Mas acabei por me tornar amigo dessa pessoa exatamente no dia em que vi pela primeira vez um dos seus trabalhos. Não, não eram os meios o foco da minha atenção. O Miguel Jardim filma com uma sensibilidade que só quem tem amor pelo cinema o consegue fazer. Não o faz por obrigação, faz o que faz porque ama o que faz. E isso revela-se no seu trabalho. É a isto talvez que se chama “talento”. E ele tem-no. Hoje em dia o Miguel já filma com mais meios e naturalmente o resultado é outro. Os meios melhoraram o trabalho, mas a sensibilidade para filmar continua ali. Recordo o Miguel porque uma vez, aquando da estreia de um dos seus filmes, a primeira aventura que ele arriscou com um público mais alargado, li uma ou duas críticas nas redes sociais que naturalmente surgiram de quem esperava ver dos filmes do Miguel aquilo que se habituou a ver nas grandes produções de Hollywood. E sorri, pois percebi que quem estava a fazer essas criticas não percebia patavina de cinema e não possuía qualquer sensibilidade artística. O meios do Miguel vi-os de perto. Filmava com amadores de acordo com a disponibilidade dos atores de última hora (alguns revelando até enorme talento). Mas o Miguel ama o que faz e tem muito talento para dar e vender. E o Miguel continua a fazer filmes, cada vez melhores. Mas os meios nunca vão alterar a essência do talento do Miguel embora acredite que contribuirão para ele melhorar cada vez mais. O Miguel nasceu para o cinema. É a praia dele. Algo muito semelhante vejo agora com os professores vedetas de TV (como eu). Já li algumas críticas (algumas, disse bem, pelo que não vale a pena dramas). Ora bem, estes professores na verdade estão a fazer aquilo que lutam há anos para não fazer: expor as suas aulas. Alguns deles já participaram em greves para suspensão de aulas assistidas. E no espaço de 2 semanas (sim, e não 1 mês como muitas pessoas dizem por aí) estão a sujeitar o seu talento ao escrutínio não só de um professor mais velho, mas também de pais, políticos, e sociedade em geral. Eu não posso afirmar que o que move todos estes professores é a mesma paixão que move o Miguel Jardim a filmar. Falando por mim, que sou parte interessada neste jogo, até penso que o Miguel ama mais o cinema do que eu dar aulas ou ser filmado na TV sem poder sequer fazer muitas correções. Mas os críticos talvez esperassem que os professores fossem uma espécie de Nicolas Cage que ao mesmo tempo dominam os programas de física, ou química ou português ou até filosofia, como o meu caso. Eu admito que se possa fazer uma crítica mais geral e sei que há pessoas que estão a ver o trabalho que apresento e que são capazes de fazer essa análise. Só teria a aprender com ela. Como eu desejava ter feito isto com tempo para escutar essas pessoas, que me dariam, certamente, muitos e bons conselhos e sugestões. O que está aqui em causa é que quem espera que estes professores ensinem matemática ao mesmo tempo que se comportam em TV como o Nicolas Cage vão-se desiludir. E note-se que estas aulas ainda são para os alunos. Mas com porta aberta pela TV. “O professor cometeu aquele erro”. Por mim falo, nas minhas aulas estou sempre a cometer erros. Não cometo erros grosseiros. Quer dizer, até devo cometer um ou outro que me irei envergonhar dele daqui a uns anos. Só espero que me engane no mesmo sentido em que Newton se enganou em muitos dos seus cálculos. O erro, o engano, faz parte de quem está a pensar sobre aquilo que faz. Mas talvez socialmente e até nas escolas estejamos pouco tolerantes ao erro. Como é que eu sei isto? Porque os alunos que me seguem há anos nas minhas aulas, pasmam de admiração quando insisto que as aulas de filosofia são aulas onde erramos mais do que acertamos, mas ao mesmo tempo são aulas em que erramos porque estamos na busca, na investigação da verdade. Só quem não investiga – e não pensa – não falha. Os professores, tal como o meu amigo realizador de cinema, estão a fazer o que melhor sabem fazer na vida, ensinar. Estão longe de serem os melhores. Eu conheço melhor que a ensinar filosofia. Como conheço pior. São os que estavam naquele lugar, não sei se certo, na hora, não sei se certa. E aceitaram o desafio. Um desafio que implica o risco que, pela minha parte, assumo. Quando olho para as 3 camaras de filmar que tenho à minha frente, com a face cheia de base que não costumo usar para dar aulas e com holofotes fortíssimos a fazer de mim o foco do acontecimento, só estou a esforçar-me para ver os meus alunos. Bons ou maus, há de tudo. Mas quando me foi proposto o desafio foi para os ajudar. 

Rolando Almeida 

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