Será que o uso de tecnologias no ensino aumenta as desigualdades sociais?
Tenho visto algum reacionarismo em relação ao recurso a tecnologias para ensinar a distância e uma eventual consequência negativa ao acentuar as desigualdades de acesso ao contexto escolar. Este é um problema complexo, porque social e exposto a multifatores. Depende obviamente do contexto familiar, nível de riqueza, etc... só não se percebe de todo a razão pela qual com o ensino a distância estes fatores sejam mais preponderantes que no ensino presencial. O fator que me parece mais relevante não é, com efeito, quase nunca citado: trata-se, com clareza, de um problema cultural. A nossa cultura de ensino é presencial e se levamos anos até aceitar as novas tecnologias (ainda com muitas reservas) nas salas de aula, como é que esperaríamos que de rompante essas tecnologias substituíssem todo um sistema que perdura nas suas estruturas mais básicas pelo menos (dizem os entendidos) desde a revolução industrial? Obviamente muitas famílias não estariam tecnologicamente apetrechadas para receber com esse rompante o ensino a distância. Provavelmente não tinham internet nem dispositivos adequados para receber o ensino a distância. E esse problema pelo menos no imediato cria obviamente desequilíbrios de acesso. A questão que aqui se colocou e que os críticos insistiram em não ver é que essa era a solução mais rápida e, de todas, a que, ainda assim, criaria menos assimetrias. Em regra, os críticos nunca souberam apontar uma solução melhor. E não souberam por uma razão muito simples: não existia. De certeza que os críticos não preferiam de todo que não houvesse aulas e ensino para ninguém, que os alunos fossem todos abandonados à sua sorte. Até porque, fosse esse o caso, os desequilíbrios seriam ainda maiores, dado que os alunos filhos de famílias ricas e com acesso ao conhecimento estariam mais apetrechados e os outros sem qualquer via de acesso à escolarização.
Mas ainda há aqui um aspeto que me parece mais relevante. É que, de um modo geral, o recurso às novas tecnologias não aumenta as diferenças de acesso ao conhecimento e ao saber. Pelo contrário, diminuem-na. A menos que ignorássemos de todo as experiências do indiano Sugata Mitra que com recurso a tecnologias e muitas das vezes sem qualquer professor envolvido, conseguiu desenvolver um projeto em que, precisamente, possibilitou acesso escolar a comunidades muito pobres nas quais raramente um professor aceitaria trabalhar. Ou ainda da experiência da Kahn Academy que levou também aulas onde elas nunca chegariam (ainda que não fosse criada inicialmente com esse propósito). Só mesmo quem anda desatento ao que se passa no mundo é que pode inferir que do recurso às tecnologias o fosso entre ricos e pobres aumenta mais do que sem esse recurso. Daqui também não se infere que com as tecnologias o mundo seja um lugar absolutamente cor de rosa. Essa crítica surgiu várias vezes e é o resultado de uma errada maneira de raciocinar. Do que se trata é que, sem este recurso, também Portugal, num período inteiro escolar de confinamento, os alunos ficariam massivamente arredados do acesso à escola, aos professores e à aprendizagem. É evidente que há soluções tecnológicas que ainda não temos (e outras que sim). Por exemplo, não usamos em Portugal massivamente os ChromeBooks que são em regra dispositivos mais baratos uma vez que para funcionarem não precisam de grande apetrecho tecnológico. Mas já tivemos vários programas de incentivo às tecnologias na educação. Na ilha da Madeira houve em tempos programas para que alunos e professores comprassem computadores com descontos generosos. Eu próprio comprei o meu primeiro portátil ao abrigo de um programa desses. Na ilha da Madeira os serviços públicos oferecem a suite de trabalho Office da Microsoft a todos os agentes educativos, assim como contas de email e espaço em cloud (que a maioria dos professores, segundo me apercebo, nem sequer usa). O programa do computador Magalhães pode não ter sido o melhor negócio para o país, mas acabou por levar computadores a lares onde eles antes nunca existiram. Mas os críticos sempre lá estiveram. Não se percebe, portanto, tanta resistência, alguma dela vinda até de muitos agentes escolares ou ligadas ao ensino. Serviu para fazer oposição política e contribuiu de certa maneira para aumentar as assimetrias, ou seja, aumentar aquilo que era o objeto da sua crítica. Nesta altura subtrair à critica alguma ação teria sido muitíssimo mais proveitoso para diminuir as tais assimetrias que a crítica por si só, em muitos momentos da vida, não diminui.
Por fim, este texto traduz (clicar para ler) muito daquilo que por vezes falta à crítica pela crítica. As expetativas que temos em relação aos outros e ao mundo é o primeiro impulso para o seu sucesso ou insucesso. Também eu tenho muitas vezes vontade de desistir, fico irritado e preferia estar no meu sofá de pantufas. Mas fazer disso vida não me parece ser a atitude mais razoável. Espero que este tempo de infelicidade para todos nós venha a mostrar-nos uma janela de oportunidades que aproveitaremos quando regressarmos à normalidade, acrescentando muitos pontos de diferença. Caso contrário, num outro momento futuro de crise, se nada mudar entretanto, estaremos na mesma e, nessa altura, os críticos de ocasião terão ganho o seu espaço público.
Notas:
1) há muitos anos fiz formação na PT Inovação, Aveiro, na plataforma de ensino que a empresa na altura desenvolvia. Na altura usava-se muito os termos em inglês de e learning e b learning (below learning). E nessa altura também se discutia o uso em português de “a” ou “à” distância. Para uma consulta desta discussão, ver aqui.
2) Um ataque possível à minha defesa é a da generalização. Ora, em escassas páginas de opinião não pretendo encerrar toda a uma discussão que exige especialização que nem eu, nem a esmagadora maioria das pessoas possui. O meu texto é apenas social para desfazer um mito social esperando não o estar a fazer com outro mito. Acredito que a minha crença é minimamente sustentada. Mas reconheço que os contextos de ensino são uma fauna bastante diversificada. O meu ponto é precisamente esse: é que é onde o acesso à aprendizagem é menor, nas comunidades mais pobres, que as tecnologias podem exatamente minimizar as diferenças sociais. E este ponto merece a minha opinião exatamente porque parece ser contraintuitivo para a maioria das pessoas. A maioria das pessoas opina que as tecnologias aumentam o fosso social porque nem todos têm acesso. Ora, é muitíssimo mais barato comprar computadores e acesso á internet que pagar a professores. E isto, ainda que soe bastante estranho, tem uma importância fundamental nas comunidades pobres. Por outro lado defendi que a resistência advém quase só de fatores culturais.
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