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A fruta da época (fora dela)

Como vai sendo hábito aqui apareço novamente para fazer um levantamento da criação musical dos primeiros meses do ano. E já se publicou o suficiente para fazer um best of anual. Vamos lá diretos ao osso. 
 
Kae Tempest “The line is a curve”

 
Lembram-se de Anne Clark? Ela não cantava nem sequer se destacava pelos dotes vocais. No entanto era uma interprete de palavras como há poucas. A música era intensa e deprimida e a voz de Clark aumentava e de que maneira essa intensidade negra. É para esse universo que a música de Kae Tempest remete.  As palavras também são muitas vezes políticas e ácidas, o que nos transporta até ao universo do texto. Mas tal como no trabalho de Clark, também no de Tempest é possível apreciar a obra sem estar sempre atentos ao texto. Porque a voz também acaba por se transformar num instrumento, uma estratégia de toda a maquinaria spoken word. 
 
Fountains D C “Skinty FIA”
Este é o terceiro album dos Rimbaud, perdão, dos irlandeses Fountains DC, provavelmente a banda mais inspirada em Rimbaud e Baudelaire da atualidade. Se Dogrel foi um estouro (transpirava Joy Division por todos os poros). “A hero`s Death” foi mais elaborado, mas menos explosvo. E este último é o tal disco da maturidade. Os ritmos são mais pesados e compassados, mas mais trabalhados também. Ouça-se a guitarra logo em “big shot”. Para mim é o disco que fazia mesmo falta aos Fountains, pois é bastante diferente do fabuloso “drogel”, mas ainda assim muitíssimo bom, talvez até melhor. 
 
Spiritualized  “everything was beautifull”
Não sei se tudo foi bonito, mas sei que a música do ex Spaceman 3, Jason Pierce, costuma ser. Não tenho neste momento a certeza se conseguimos o vislumbre de beleza desta caixa de comprimidos datada deste ano dos ingleses Spiritualized que conseguimos com “Ladies and gentlemen we are floating...”, mas tenho a certeza que mesmo sem esse momento alto da carreira, a música deles seria ainda assim sempre bela, arrastada, melódica, ruidosa. Este disco vem também embalado em forma de caixa de comprimidos. Não sei se a cura anda por aqui, mas certamente este disco é um dos momentos do ano. Mas ainda vamos devorá-lo nas próximas semanas. 
 
Wet Leg “s/t”
Querem rock direto, com muitas pitadas de indie pop? O disco das meninas inglesas Wet Leg tem isso tudo. Recordam-se das manas dos Pixies, as Deal? Será a referência mais óbvia. Um bom disco, portanto. Depois do sucesso viral da viciante “chaise long” as portas ficaram escancaradas para o disco. Há potenciais hits indie lá no meio. Descubram-nos. 
 
Eden Synthetic Corps “The encyclopaedia of Black Sleep”
Os ESC são um abanda portuguesa e bastante conhecida no meio das eletrónicas mais dark e pesadas. Movem-se em territórios como os dos Frontline Assembly, Vómito Negro ou os mais famosos Front 242. E são bastante conhecidos nesses meios, sendo praticamente desconhecidos fora desse circuito pois a música que praticam não é habitual nas playlists de rádios ou redes sociais. Mas são de uma competência ao nível dos melhores do género. Uma composição sonora muito maquinal, ritmos acelerados e uso recorrente de eletrónica. Como é habitual nestes terrenos, a voz está robotizada e há uma mistura entre agressividade, ritmos quase hipnóticos e melodias. E já têm uma boa meia dúzia de discos gravados e centenas de concertos na bagagem. 
 
Orville Peck “bronco”
É sul africano, com base no Canadá e pode ser visto como um cantor country. Mas um cantor country como a maioria dos cantores country? De modo algum. Para já não se conhece o rosto de Orville já que ele o esconde com uma máscara em franjas. E depois porque não se trata de uma country tradicional, mas de uma visão muito pessoal da country. A voz é poderosa. Este disco chega a ser mais animado, menos negro que os anteriores
 
Loop “sonancy”
Só muito ocasionalmente é que me lembro de reouvir os Loop. Conheci-os em 1989 pela mão de António Sérgio, no fabuloso “breath into me”. Uma música sónica, hipnótica, shoegaze até dizer chega. Não me passaria pela cabeça que já bem mais velhotes regressariam este ano com um novo disco. E claro não há nada que inventar e aplicam a mesma fórmula que os revelou na altura tão originais: noise, feedback, distorção e psicadelismo. Está lá tudo de novo. E para quem, como eu, aprecia esta sonoridade isso não é problema algum, pois quando gostamos, também apreciamos a repetição pelo prazer que nos proporciona. Comece-se esta deliciosa aparição com “halo”. Talvez seja um dos momentos mais fáceis de todo o disco. 
 
Deathcrash “return”
Quase sempre que falo de discos tenho de passar por Londres. E na maioria das vezes passo lá várias vezes, pois grande parte da música que consumo é inglesa. Os Deathcrash são slowcore. Estão a ver aquelas canções que começam com uma tarola de jazz, vão crescendo até que rebentam? Tipo uma bola de sabão, ou uma bola de pastilha elástica. Ok, ok, mas gravem a bola até rebentar e depois vejam-na em camara lenta. Aí têm a música dos DeathCrush: bolas a encher até rebentar mas em camara lenta. E pelo meio fica-se com a bola, ali, parada, quase a esvaziar, para lhe dar um novo fôlego. Como acontece nos momentos que antecede “wrestle with Jimmy”. Depois enche rapidamente e quase rebenta, mas antes de rebentar, novo esvaziamento, agora mais rápido. Até que rebenta. Nem sempre rebenta. Mas quando não rebenta anda lá muito perto. Mas é um disco muito imaginativo, muito orgânico, sem grandes arranjos eletrónicos, um quarteto em estado nú. 
 
DITZ “the great regression”
Este é um disco bem duro, post-punk quase a roçar os limites de algum do metal. Um disco bastante acelerado que parece ter sido gravado pelos primos dos Fugazzi, mas deste lado do planeta. Estará ali entre os Fugazzi e os Killing Joke. Uma das surpresas até porque os desconhecia. 
 
Alt-J “The dream”

 
Ainda que bastante popular nos meios alternativos nunca gostei especialmente da música dos Alt-J. Nunca gostei até este último disco. Está recheado de boas canções, composições complexas e desafiantes. Uma das fortes é “hard drive gold”. De ritmo forte, quase dançável e cheio de peripécias sonoras e vocais . É um disco para consumir devagarinho. 

Horace Handy “midnight rocker”
Conheci Horace Andy pela mão dos Massive Attack. Um casamento perfeito. Mas Horace Andy tem uma longa carreira com discos a solo. São discos que militam entre o dub e o raegee. Este registo de 2022 tem inclusive uma versão de “safe from harm”, precisamente a canção de autoria dos Massive. 
 
Helms Alee “keep this be the way”
Esta é a banda americana que anda em digressão com os Melvins. Post-punk, mas não apenas. Há misturas de rock, noise rock ou post hard core. E este é, segundo sei, o seu sexto disco, o que indica uma longevidade de assinalar. 
 
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Nesta primeira fornada do ano ainda há discos que não ouvi e irei descobrir, mas gostaria de assinalar bons discos de Beach House, The Bug Club, Stromae, Red Hot Chilli Peppers, Denzel Curry, Jack White, Wim Mertens e Father John Misty.
 
Discos novos são esperados para breve e estou ansioso por ouvir os de Ana Calvi e Interpol. 
Nas margens haverá sempre discos novos a descobrir, aqueles que escapam mais aos filtros que uso.


 












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