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Proximidade e moralidade

(foto privada do autor do blogue)

A ideia de se criticar negativamente alguém com bastante distância física e social parece pacífica. Podemos, pois, criticar sem mácula um escritor americano se formos portugueses. Nunca nos vamos cruzar com ele na rua, nem temos de lhe dizer bom dia. Não falamos sequer a mesma língua e como provavelmente o escritor nem lê português será muito difícil algum dia saber o que escrevemos sobre o seu trabalho. Também parece pacífica a ideia de criticarmos positivamente o trabalho de um colega do lado. Ou seja, um escritor que seja nosso colega de trabalho não implica problemas de maior se falarmos bem do trabalho dele. Mas vamos agora baralhar um pouco as coisas. E se criticarmos negativamente o trabalho de alguém que nos é fisicamente próximo? Por regra isso vai dar sarilho, desamiganços físicos e virtuais, etc.. mas coisa boa não acarreta. O mesmo trabalho não implica problemas se for criticável a uma grande distância física e social, mas implica problemas se a distância for reduzida. Até certo ponto há uma barreira que nos ajuda a perceber porque assim é. Pois no segundo caso, no da pequena ou reduzida distância, afinal, mantemos uma relação pessoal. E se desejamos a sanidade da relação pessoal devemos tolerar e evitar a crítica. Até que ponto o devemos fazer? Hoje sabemos do escândalo que envolve a pedofilia na igreja católica. Havia uma relação pessoal. Havia uma instituição a defender. E a nossa intuição dá uma resposta: é moralmente errado proteger a instituição ocultando a destruição de vidas por violação sexual. Nem a distância física, social ou institucional justifica tal crime. Bem, há um crime. E no caso de outras ações consideradas normalmente imorais, como a aldrabice, o trabalho desleixado e mal feito, a procura de sucesso a todo o custo, etc? Vá lá, passando o exagero da minha analogia com a igreja, será que é moralmente errado tolerar a mentira do colega do lado mas não a tolerar em alguém que não conhecemos presencialmente e com quem não mantemos nenhum tipo de relação social ou física? De um modo mais simples: até que ponto a distância é um critério de avaliação moral? 

O utilitarista Peter Singer oferece uma sugestão interessante que posso, talvez abusivamente, adaptar aqui. Qual a diferença moral em salvar uma criança que está a afogar-se ao meu lado e não o fazer para milhares que morrem de fome a muita distância, se tal não implicar um dano maior para mim? (por exemplo, se 100€ não me fizer diferença num ano, porque não doá-los para salvar crianças que eu nunca vi nem verei da fome severa?). Passar ao lado do lago e nada fazer para salvar a criança a afogar-se apenas porque não quero sujar a minha roupa nova é imoral. Singer sugere que a distância física não pode ser critério relevante em termos morais, ou seja, se moralmente o nosso dever é salvar a criança mesmo estragando a nossa roupa nova que custou 100€, do mesmo modo a nossa obrigação é doar 100€ para salvar a criança que nunca vi se tal não acarretar um mal maior para o doador. Introduzir aqui o critério da distância incorre numa arbitrariedade moral, segundo o filósofo australiano. 

Ora se adaptarmos este princípio de base utilitarista, na verdade, criticar o trabalho de um colega meu, da minha escola e que eu cumprimento todos os dias, se o trabalho contiver alguma imoralidade, como ser aldrabão é um dever moral exatamente na mesma proporção que criticar o de um colega que nunca vi, mas conheço apenas o trabalho e que vive num país distante. Pois é! Sobra é um problema que pelo menos aqui a ideia de Singer de pouco nos serve: afinal onde está a linha do que é e não é moral? Talvez o “dano” constitua essa linha. Mas vamos por partes. Sabemos que um colega de profissão se for um violador pedófilo está a provocar dano a outra pessoa, uma criança. Mas e se for um aldrabão? Está a causar dano? Por exemplo, um professor aldrabão. Na verdade, parece causar pelo menos algum dano aos seus alunos, pois não os ensina com afinco e procurando o rigor. Parece com efeito que de longe é muitíssimo preferível um professor aldrabão a um violador. O exemplo do professor é aqui meramente ilustrativo. Poderia usar o de um escritor, político, médico, advogado, etc... É certo que podemos aqui considerar o papel das instituições. Não cabe aos indivíduos criticarem o trabalho dos outros, pois as instituições devem ter mecanismos de atuação. Certo. Mas ainda assim isto não responde à questão de saber como nos devemos comportar. Numa versão deontológica simples, talvez o dever de denunciar um profissional aldrabão seja exatamente a mesma de denunciar um pedófilo, ainda que eu pense que existe uma linha divisória entre a imoralidade da aldrabice e a imoralidade da violação, já que os mecanismos que temos de nos proteger de uma são muito mais acessíveis do que da outra, isto é, o dano é incomensuravelmente maior na violação. Mas isto não me parece resolver o problema, pois a aldrabice causa dano em menor proporção (ou não, dependendo da aldrabice, mas vamos pressupor que sim), mas ainda assim soa a moralmente errado. 

Este problema é interessante pois o que queremos saber é acerca dos critérios morais que usamos para criticar, pelo menos com algum pendor publico (jornais, redes sociais, etc), o trabalho de alguém e se a proximidade física e social é ou não um critério que deva pesar na equação das avaliações morais. Este problema é interessante pois colide com as nossas avaliações mais quotidianas. Diz-nos a intuição que não criticamos os que nos estão mais próximos, mas podemos fazê-lo com os mais distantes. Eventualmente a crítica do trabalho de alguém será sempre errada, ideia que me parece mais remota. Mas perante o mesmo alvo (por exemplo, o de um escritor aldrabão) será moralmente indiferente a crítica pública se não tivermos uma relação de proximidade com a pessoa que fez o trabalho alvo da crítica do que se não conhecermos a pessoa nos nossos circuitos sociais e físicos? Será que a distância atenua a dor moral e por isso as avaliações críticas tornam-se menos imorais?

Eventualmente a ética não tem poder para responder às pequenas inquietações da vida. O médico que trabalha para salvar uma vida e está profundamente empenhado em salvá-la não pode pensar na quantidade de vidas que salvaria se estivesse num meio onde o talento dele fosse ainda mais necessário. O professor que dá boas aulas não pode estar a pensar na falta que faz o seu talento em meios mais pobres... e por aí adiante. Talvez a ética exija demais daquilo que nós, seres humanos, somos capazes de dar como resposta aos problemas. Mas por outro lado um dos fundamentos da ética é que não podemos fazer juízos arbitrariamente, ao sabor do vento e sem uma reflexão. Vivemos no limbo do que nos é possível pensar e das melhores respostas que podemos encontrar para os problemas e mesmo os aparentemente mais comezinhos são também os que escondem os maiores dilemas e exigem a resposta à questão fundamental: como devemos agir?

Este pequeno texto não pretende, claro está, encerrar qualquer questão, mas apenas mostrar como o problema pode ir um pouco além (senão mesmo muito) das nossas intuições mais básicas. De resto haverá sempre muita literatura específica que trata este problema de maneira exaustiva. Principalmente para quem não lida mais de perto com este tipo de problema, talvez encontre aqui alguma inspiração para remeter a leituras mais avançadas. E obviamente qualquer incorreção ou falta de rigor nesta meia dúzia de palavras assim como alguma desordem são da minha inteira responsabilidade. Não é por sabermos pouco de um assunto que devemos evitar falar dele se mantivermos a responsabilidade de deixar a questão em aberto quanto à sua possível solução.

E finalmente o que motivou este texto foi mais uma pequena desavença numa rede social em que eu como o meu interlocutor só partilhamos esta ideia: cada um não devia ter dito aquilo que disse. É disto que a vida se faz. 

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